Moçambique em crise de meia idade

Depois de 50 anos de independência em Moçambique: o quê e como celebrar?

Manifestação popular em avenida movimentada da zona central da Maputo, 22 de Novembro de 2024. Imagem © Marílio Wane.

Moçambique prepara-se para celebrar os 50 anos da sua independência, conquistada a 25 de Junho de 1975, em meio a um ambiente de tensão política que traz consigo diversas questões decisivas quanto aos rumos futuros do país. O momento coincide com as independências das outras antigas colónias portuguesas em África ocorridas no mesmo ano, refletindo o carácter articulado da resistência anticolonial nestes países, diante de um inimigo comum e após uma década de luta armada. Outro aspecto comum é que, a despeito das enormes distâncias geográficas e da descontinuidade territorial, os diferentes movimentos de libertação deste grupo de nações dialogavam entre si, ao mesmo tempo em que estabeleciam alianças externas alinhadas ao bloco socialista, no contexto da Guerra Fria. Daí que, uma vez conquistada a libertação, os antigos movimentos instauraram regimes de partido único de inspiração marxista-leninista, vigentes até princípios da década de 1990, quando passaram a adotar regimes de democracia liberal, por força das políticas de reajustamento estrutural impostas pelo Banco Mundial e pelo FMI.

Assim, a ocasião do cinquentenário das independências da chamada “África lusófona” apresenta-se uma oportunidade inevitável de reflexão e balanço da experiência histórica, em cada um dos países e em conjunto. Para além das celebrações oficiais, certamente haverá também eventos artísticos, seminários acadêmicos e, eventualmente, também protestos, uma vez que não se pode escapar à dura realidade das péssimas condições de vida vigentes neste grupo de nações, que estão entre as mais empobrecidas do mundo. Embora, em grande medida, a história política dos PALOP siga um roteiro mais ou menos comum, individualmente, os desdobramentos deram-se de acordo com as suas próprias idiossincrasias, destacando-se entretanto, o ambiente de instabilidade político-institucional em alguns deles. É o caso de Angola, de Guiné-Bissau e de Moçambique, cuja recente crise pós-eleitoral tem chamado a atenção do mundo e mais especificamente da região, devido aos seus elementos estruturais, que refletem problemáticas mais abrangentes na região.

A causa imediata da crise política foi o processo eleitoral de Outubro de 2024 que, pela sétima vez, deu vitória ao partido Frelimo, em meio a diversas denúncias e indícios de fraude. Na verdade, trata-se de uma situação recorrente amplamente registada e documentada desde as primeiras eleições multipartidárias realizadas em 1994. A novidade consiste no fato de que, desta vez, a contestação partiu não apenas da oposição, mas por parte de diversos setores da sociedade civil e até mesmo de organismos internacionais que, de certa forma, tem contemporizado diante de situações flagrantes. Por exemplo, em relatório divulgado em fins de Janeiro último, a União Europeia aponta para a ocorrência de “irregularidades e discrepâncias que afetam a integridade do processo e dos resultados eleitorais no país”. Como pano de fundo destas acusações recorrentes de fraude eleitoral, está o fato de, por conta de uma certa inércia da História, o partido Frelimo deter controlo quase absoluto sobre as instituições do Estado, uma vez que está no poder desde a independência. Desta forma, adquiriu a capacidade de instrumentalizá-las a seu favor, tornando a disputa política manifestamente desigual. Tal “inércia” resulta de que, desde a independência e ao longo das décadas seguintes, o regime da Frelimo tenha logrado produzir considerável consenso entre as massas, ancorado na legitimidade adquirida através da luta pela independência.

O início da crise deu-se logo imediatamente após o primeiro anúncio oficial dos resultados quando Venâncio Mondlane, principal candidato da oposição, convocou uma série de manifestações de protestos de dimensões jamais vistas no país. Questões de mérito à parte, e a um nível mais profundo de análise, a ampla contestação dos resultados eleitorais pode ser interpretada como o rompimento do tal consenso, sinalizando o divórcio entre o antigo partido-Estado e amplos setores da sociedade. Não apenas as manifestações contrárias, mas sobretudo, a repressão policial desproporcional que se observou em resposta tem sido a imagem emblemática do momento político crítico vivido no país. Ainda mais simbólico do tal “divórcio” foi o próprio ato da cerimónia de posse do novo presidente, Daniel Chapo, negativamente marcada pela ausência da costumeira participação popular. Devido ao ambiente de alta tensão que já se vivia no dia da posse (15 de Janeiro), a Praça da Independência teve de ser isolada alegadamente por razões de segurança. Enquanto Chapo fazia o seu discurso, alguns manifestantes confrontavam a polícia no entorno da praça, tendo-se registado um óbito e cenas virais de violência policial que correram o mundo.

Outro aspeto inédito que caracterizou o ato foi a ausência de representações estrangeiras ao mais alto nível, especialmente de países aliados históricos como, por exemplo, Angola, Zimbabwe, Tanzânia, Namíbia, Portugal, entre outros. Tais ausências não passaram despercebidas pelos meios de comunicação e foram exploradas pelos opositores do regime como sinal do embaraço internacional causado pelo carácter controverso das eleições. Particularmente em Portugal, onde o parlamento chegou a não recomendar a presença do Presidente da República ou do Primeiro-Ministro, como tem sido a praxe. De resto, apenas a África do Sul, o aliado mais próximo na região e a Guiné-Bissau, que vive igualmente uma crise político-institucional, fizeram-se representar por seus Chefes de Estado.

Um novo velho governo diante de uma encruzilhada

Diante do impasse, diversas vozes da sociedade civil moçambicana tem sugerido ao novo governo a tomada de um conjunto de ações com vistas a contornar a crise instalada. Entretanto, tais expectativas – como a formação de um governo inclusivo, de unidade, e o diálogo com o principal líder da oposição – não tem sido correspondidas. Pelo contrário, os sinais emitidos pelo novo mandatário (que é, simultaneamente, presidente do partido) apontam para o reforço do poder hegemónico da Frelimo, cujos quadros compõem a totalidade dos ministérios, somado à maioria absoluta no parlamento, igualmente reforçada pelos resultados eleitorais.

Em contraste com o relativo isolamento social do partido no poder, Mondlane (atualmente em vias de fundar o seu próprio partido), tem continuado o seu trabalho de mobilização interna e externa, mesmo após o autoexílio que se impôs após as eleições de Outubro e do seu regresso triunfal à capital do país, em Janeiro. Nessa ocasião, autoproclamou-se “Presidente da República” e, ato contínuo, passou a emitir “decretos presidenciais” do seu “governo paralelo”, como forma de pressionar o governo a adotar medidas que gozam de amplo apoio popular, mas que desafiam a ordem institucional.

Debates jurídico-legais à parte, o fato é que muitos destes “decretos” foram temporariamente acatados por boa parte da população, gerando situações de tensão social e violência política. De um lado, o governo classificou tais atos como “vandalismo” e de outro, a oposição reivindicou a sua legitimidade, como forma de desobediência civil, face às difíceis condições de vida impostas por uma governança alegadamente ilegítima. Dado concreto é que viveu-se nos primeiros meses do ano um alto grau de instabilidade social, marcada por interdição da circulação em diversos pontos do país, depredação de infraestruturas públicas e privadas, paralisação do trabalho e do comércio, etc, respondidos com dura repressão policial.

Para um país de economia, instituições e infraestruturas frágeis, a manutenção de tal estado de coisas pode facilmente levar a uma situação de ingovernabilidade, o que por sua vez, levanta outro tipo de debate: sobre quem seriam os beneficiários de tal instabilidade. Neste sentido, pesam sobre Mondlane acusações difusas de estar a serviço de interesses externos, baseadas no seu alinhamento ideológico com setores da direita e até de extrema-direita mundial. Somados estes aspetos, tais suspeitas remetem ao fenómeno das “revoluções coloridas”, como a chamada Primavera Árabe, que atingiu países do norte do continente, na década de 2010. E ainda nesta ordem de ideias, o uso das redes sociais como sua principal ferramenta de comunicação e mobilização constitui outro elemento de desconfiança de que esteja a se repetir, em Moçambique, a mesma estratégia de desestabilização de regimes políticos do Sul Global a favor de interesses do “Ocidente”.

O quê e como?

Seja como for, as pressões exercidas por interesses externos sempre fizeram parte da equação do exercício do poder, de forma mais aguda nas nações economicamente mais dependentes. De modo que a grande questão que se coloca é como os governos reagem e interagem diante dessa realidade, tendo em conta os seus próprios interesses como Estados soberanos e, principalmente, do ponto de vista das condições de vida da população. Sob este último aspeto, a ocasião do cinquentenário da independência forçosamente impõe a seguinte questão: o que celebrar? Em outras palavras, significa questionar quais foram os benefícios objetivamente trazidos para o conjunto da sociedade como resultado da emancipação política. Embora reconheçam-se os constrangimentos impostos por uma ordem económica mundial opressiva e desfavorável aos países do Sul Global, não se pode eximir os governos locais da responsabilidade pelo bem-estar dos seus povos. E, dentre os vários fatores explicativos da sua ausência em países como Moçambique, o desgaste natural gerado por cinco décadas de poder exercido ininterruptamente por uma única força política é certamente um dos mais importantes.

O reconhecimento desta realidade torna-se particularmente relevante num momento em que sopram do norte do continente ventos do Sahel a reivindicar a libertação da dominação neocolonialista, exercida pelas antigas potências imperialistas ocidentais em conluio com as elites conservadoras africanas. E é precisamente este último elemento da equação que deve receber especial atenção no debate público das sociedades africanas, no que diz respeito às dinâmicas políticas internas que tornam possível o neocolonialismo. Se por um lado, a crescente popularidade de Ibrahim Traoré entre a juventude africana sinaliza a emergência de uma nova consciência política, por outro lado, pode ser vista como uma ameaça em potencial às já velhas estruturas de poder pós-coloniais. É o caso da região mais ao sul do continente, em que os partidos líderes dos movimentos de libertação – Frelimo, MPLA, ANC, ZANU-PF, SWAPO, historicamente aliados – vivenciam uma crise de legitimidade sem precedentes, devido à sua longevidade forçada.

Somada à questão de “o quê”, importa refletir, igualmente sobre como celebrar o marco dos 50 anos de libertação do jugo colonial. Uma vez que já se iniciaram os preparativos oficiais para o efeito, a situação de crise e instabilidade traz consigo a problemática mais abrangente da inclusão social. Ou seja, trata-se do desafio de garantir que o momento da celebração seja carregado de sentido para todo o conjunto da sociedade, algo difícil dado o estado de fragmentação em que atualmente se encontra o tecido social. Mais do que nunca, a necessidade de diálogo aberto e inclusivo coloca-se como um dado imperativo, não apenas para o momento específico da pretendida festa no dia 25 de Junho de 2025, mas como ferramenta que possibilite perspetivas de futuro sólidas a longo prazo. Em outras palavras, o grande desafio que se impõe à sociedade moçambicana consiste na capacidade do sistema político historicamente autoritário e centralizado passar a promover maior participação e inclusão da sociedade civil nos processos de decisão para uma construção coletiva dos destinos da Nação.

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