Quando Portugal esquece
- Priscilla Marques Campos
Em 'Contos do Esquecimento,' Dulce Fernandes desenterrou histórias esquecidas da escravidão em Portugal, desafiando uma mitologia nacional construída sobre viagens marítimas, silêncio e memória seletiva.

Contos do Esquecimento © 2024.
Desde Ernest Renan, filósofo francês cuja obra foi decisiva para a compreensão do nacionalismo em escala global, sabemos que o esquecimento é um elemento fundamental em qualquer processo de formação nacional.
Isso porque a construção de uma nação dificilmente se separa da violência, seja na forma de revolução ou anticolonialismo. O que faz uma nação, argumenta Renan famosamente, seria a disposição de esquecer e seguir em frente na construção de lealdades nacionais. Estar juntos, nesse sentido, se resumiria à capacidade de um grupo específico, com fronteiras nacionais delimitadas, de esquecer o processo pelo qual surgiu. Só assim uma nação territorialmente definida pode coexistir em paz.
Renan escreveu isso há mais de 150 anos, e desde então muita coisa mudou na teoria e na prática do nacionalismo. No entanto, não é difícil enxergar no filme de Dulce Fernandes uma crítica a essa visão. Não é à toa, suponho, que Fernandes batizou seu novo trabalho de Contos do Esquecimento. Ela não é estranha a temas sensíveis, especialmente aqueles que envolvem memória, como as lembranças traumáticas dos cubanos que lutaram em Angola, retratadas em Cartas de Angola (2011). Contos do Esquecimento também girou em torno da memória — ou dos tipos de memória que uma nação específica, neste caso Portugal, decidiu esquecer ou honrar. Destacando o envolvimento português no tráfico transatlântico de escravizados, especificamente como esse comércio conectou lugares distantes das costas atlânticas da África e das Américas.
Essa foi a parte da história que a nação portuguesa preferiu esquecer. Além disso, Fernandes apontou para algo mais profundo e perturbador: certos tipos de histórias foram suprimidas ou silenciadas, servindo como alicerce para a cristalização da ideia imaginada de Portugal, vista nos mitos que percorrem a literatura portuguesa, de Luís de Camões a Fernando Pessoa e além. Essa literatura tinha o mar como seu principal tropo, celebrando a aventura e a coragem do caráter português e como ele foi instrumental para a suposta “descoberta” do Novo Mundo. No entanto, o que falta aqui é como esse processo contribuiu para um dos eventos mais dramáticos e duradouros da história: o tráfico atlântico de escravos.
Assim, o silêncio e a distorção estão implícitos nas recriações sustentadas da mitologia portuguesa. O filme de Dulce não tratou apenas da escravidão ou do tráfico de escravos, mas também do presente — de como o silêncio e a repressão do passado alimentam o racismo ou a negação do papel central da questão racial na formação de Portugal.
O que instiga esse filme reflexivo é uma escavação no sul de Portugal, em Lagos, para a construção de um estacionamento. Revelou-se que o local havia sido usado no passado, até o século XV, como um aterro, exigindo a presença de arqueólogos para análise. Além dos objetos esperados em aterros do sul de Portugal do século XV, havia esqueletos humanos. Esses vestígios foram submetidos a testes, e determinou-se que pertenciam a africanos que poderiam ter sido escravizados por Portugal e trazidos para o sul do país, particularmente Lagos. Como os enterros datam de 1420 a 1480, seria lógico afirmar que Portugal foi destino do tráfico de escravos antes da abertura da rota para o Brasil.
Esperava-se que tal descoberta provocasse um momento de reflexão social em Portugal, em que o passado fosse seriamente confrontado através desse achado. Não seria a primeira vez na história que a descoberta de restos humanos (na União Soviética, no Camboja ou na Guiné-Bissau) provocou mudanças cataclísmicas. O fato de isso não ter acontecido em Lagos, com o desenterramento desses restos, só mostrou o quanto essas partes da história portuguesa ainda estão profundamente reprimidas. Fernandes mostrou o manejo dos vestígios por meio depoimentos orais dos responsáveis. Milhares daqueles ossos humanos foram exumados e catalogados. Há algumas sequências no filme que mostram o tratamento oferecido ao que foi localizado. Eles foram removidos, a construção do estacionamento continuou, e uma placa comemorativa foi colocada para marcar o local dessa importante descoberta arqueológica.
A motivação de Fernandes, porém, está em outro lugar. Conforme a narrativa se desenrola, fica claro que ela está menos interessada no espaço discursivo aberto pela descoberta do que nas ramificações históricas desses achados arqueológicos. Fernandes revelou meticulosamente os nomes de dezenas de africanos, registrados pelos seus próprios nomes que usavam no local de suas origens, e as formas como eram transportados nas caravelas e galeões investidos nessas viagens marítimas. É uma história criminosa, já que Portugal tanto se orgulha da engenhosidade por trás das inovações náuticas que permitiram as viagens aos novos mundos — uma Odisseia reproduzida com intoxicação e orgulho em edifícios públicos, estações de metrô, sem qualquer referência ao tráfico transatlântico de escravos.
O interesse, então, esteve em mostrar os sinais da presença negra na história e no presente de Portugal, apresentados de maneiras tão sutis que podem passar despercebidos. Um espectador atento — ou melhor, ouvinte — perceberia sotaques africanos nas vozes ao fundo das longas sequências que mostram a Praça do Comércio em Lisboa, ou que Denise Viana, uma mulher negra portuguesa, narra as longas cenas do mar. Ou até a sugestão de que há uma conexão entre a escravidão em Portugal continental e a implementação de leis trabalhistas duras no final do século XIX. É assim que a história pode ser reivindicada e recontada de outra forma.
Fernandes poderia ter optado por uma abordagem mais realista e documental, com especialistas e entrevistas, por exemplo. No entanto, ela escolheu apresentar seu material de maneira mais poética e evocativa. O filme é composto principalmente por longas sequências de registros e referências históricas, exibidos em branco sobre fundo preto, coletados de vários arquivos. Ela também mostra longas tomadas de aterros, bordas de florestas e o mar onipresente. O estacionamento construído, escuro e cavernoso, aparece em algumas cenas, mas o minigolfe é mostrado apenas no final, filmado por um drone, uma espécie de plano de abertura que amplia toda a área descrita no filme. O fato de Fernandes só mostrar isso no final, e não no início, é emblemático.
Contos do Esquecimento seria, portanto, uma poderosa contranarrativa em sua tentativa de ressignificar o mar como tropo central da saga marítima portuguesa. Toda a identidade portuguesa se baseia nessa construção, celebrando como o “gênio português”, isolado do resto da Europa pelo poder da Espanha, encontrou rotas de navegação para a Ásia, o sul da África e as Américas. No entanto, como o teórico ugandense Mahmood Mamdani demonstrou recentemente em Nem colono nem nativo, é um erro não fazer a conexão entre conquista, escravidão e a formação dos Estados ibéricos. A luta pela expansão da soberania contra os muçulmanos na Península Ibérica, a formação do Estado e da nação, é inseparável das incursões ibéricas na África, América e Ásia, sob o que foi estabelecido no Tratado de Tordesilhas. Não surpreende que esse momento seja a essência da nação portuguesa, constantemente lembrado em inúmeros memoriais, exposições, livros, filmes e poemas, repetido até a exaustão em materiais pedagógicos escolares, nos quais Portugal é descrito como a nação mais antiga e culturalmente homogênea da Europa, existindo quase ininterruptamente desde sua fundação por D. Afonso Henriques, há 800 anos. Essas narrativas contam a história do que o país quer lembrar, e do que decidiu esquecer.
O filme poético de Fernandes, então, rompe com a narrativa mitopoética da nação portuguesa. O problema aqui não é apenas de proporções históricas, mas reside na forma como o esquecimento da presença de grupos marginalizados no passado justifica sua marginalização no presente. Além dessa desconexão está também a raiz do racismo contemporâneo em Portugal.