No ritmo da identidade black

Laura Burocco
Priscilla Marques Campos

Um documentário marcante revela a cena soul radical que eletrificou o Rio dos anos 1970, inspirou a consciência negra e aterrorizou a ditadura militar brasileira.

Foto: CPDoc JB

Pela primeira vez no ano passado (2024), em 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra foi reconhecido como feriado nacional no Brasil. A data remete à morte de Zumbi dos Palmares, líder do maior quilombo brasileiro, que foi decapitado em 1695 pela Coroa Portuguesa, tendo sua cabeça exposta como troféu em praça pública (diz-se que isso foi para dissipar o mito de sua imortalidade). O quilombo era uma comunidade majoritariamente composta de pessoas escravizadas que fugiam das fazendas de propriedade de brancos, onde eram mantidas presas nas senzalas, os alojamentos designados para elas – daí o nome de um texto clássico (e controverso) brasileiro, Casa-Grande & Senzala (1933), do sociólogo Gilberto Freyre. O objetivo do dia é celebrar a luta pela igualdade racial, comemorar a resistência dos povos afrodescendentes e promover ações concretas de reparação, bem como aumentar a representação negra na sociedade brasileira.

O documentário Black Rio! Black Power!, dirigido por Emilio Domingos, resultado de dez anos de trabalho de pesquisa, que circulou por 24 festivais nacionais e internacionais, ganhando diversos prêmios – cumpre esse objetivo ao contar a história de um movimento cultural que ainda é subestimado. Ao falar do Rio de Janeiro, as associações mais óbvias são com samba, bossa nova e, mais recentemente, o funk, pouco se fala sobre soul. No entanto, não reconhecer o fio de continuidade entre eles – e também com o hip hop – seria como chamar o funk de “filho de pai desconhecido”. E a Furacão 2000, gravadora e produtora dos bailes daquela época, representa exatamente essa linha de continuidade.

Segundo o jornalista Silvio Essinger (O Batidão do Funk, 2005), “a escolha de 1976 como marco do movimento se deve ao fato de ter sido o ano em que ele se tornou visível para além de seus próprios participantes, graças à reportagem Black Rio: o orgulho (importado) de ser negro no Brasil, da jornalista negra Lena Frias, especialista em música popular brasileira, e do fotógrafo Almir Veiga, publicada no Jornal do Brasil.”

Na realidade, esses foram anos em que “o fenômeno dos bailes black na periferia do Rio” começaram a chamar a atenção das autoridades. O Brasil estava sob uma ditadura empresarial-militar, e tais governantes viam com desconfiança um movimento que reunia mais de 15.000 jovens negros da periferia, que não só dançavam, mas também se organizavam politicamente. Era a época em que o movimento pelos direitos civis da população negra ganhava força nos Estados Unidos, e muitos países africanos conquistavam a independência. Uma página de jornal exibida no documentário define o movimento como “Uma versão brasileira do movimento racial made in USA“. As autoridades da ordem pública já identificavam o Rio de Janeiro como o epicentro da “nova tendência”. De fato, embora o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) tivesse infiltrados nos bailes, e Dom Filó, líder do movimento e protagonista do documentário, relate ter sido sequestrado pela polícia militar, as autoridades da época subestimaram o poder do fenômeno.

“Entre 1972 e 1975, quase um milhão de jovens receberam, através da dança, um choque cultural, um choque de identidade, um pensamento crítico sobre o que significa (ele não usou o verbo no passado…) ser negro neste país racista”, é assim que Filó descreve os bailes do Soul Grand Prix, que aconteciam no ginásio esportivo Rocha Miranda, na zona norte do Rio de Janeiro, “nosso Maracanã”, como um dos entrevistados coloca. Em uma das paredes eram projetadas imagens de James Brown, Aretha Franklin, os ídolos dos frequentadores, junto com filmagens deles mesmos gravadas durante os bailes: “assim as pessoas se sentiam vistas, e o orgulho negro nascia.” Junto com isso, mensagens afirmativas eram lançadas que fortaleciam a estética negra, o que assustava a sociedade (mesmo em 2002, vendedoras negras em butiques da zona sul do Rio eram obrigadas a alisar o cabelo ou, no mínimo, trançá-lo).

O direito de aspirar à mobilidade social estava sendo reivindicado. “O primeiro engenheiro negro que conheci foi Filó; nosso destino era ter um lugar subordinado”, diz um dos entrevistados. O líder do movimento atuava como MC. “Meu papel era entregar uma mensagem positiva”, para que a juventude pudesse elevar sua autoestima em uma sociedade que fazia de tudo para destruí-la. Era a resposta do Rio a Jesse Jackson e Nina Simone. Para os frequentadores do Soul Grand Prix, o Partido dos Panteras Negras era uma referência. Na época, os serviços secretos brasileiros produziram um dossiê, tornado público apenas em 2021, com o título surreal: Racismo Negro no Brasil.

Como Filó explica

Esta agência recebeu informações de que um grupo de jovens negros está se formando no Rio, com um nível intelectual acima da média, com a intenção de criar um clima de luta racial entre brancos e negros no Brasil. Diz-se que o grupo é liderado por um negro americano que controla o dinheiro, que parece vir do exterior, possivelmente dos EUA. Alguns dos objetivos do grupo seriam: sequestrar os filhos de industriais brancos, criar bairros exclusivos para negros e formar grupos anti-brancos entre os negros. O dossiê não é assinado.

Como a ditadura apoiava o mito da democracia racial através da tese da miscigenação, aquelas manifestações antirracistas eram vistas como a importação de um problema que “não existia” no Brasil. Eram os próprios negros, segundo o regime, que criavam o problema racial no país. No mesmo período, o governo fez de tudo para impedir que Abdias Nascimento, intelectual e ativista pan-africanista, fundador do Teatro Experimental do Negro no Rio de Janeiro, participasse do Festac77, o segundo festival mundial de Artes e Cultura Negras e Africanas, realizado em Lagos (Sitiado em Lagos, 1981).

Do Soul Grand Prix surgiu, em 1976, a Banda Black Rio, uma das maiores referências instrumentais da música popular brasileira. Mas não foi a ditadura que acabou com o movimento soul, e sim a imposição da disco music pelas gravadoras e emissoras de TV. “A gente não se encaixava no estilo da disco music. Disco era John Travolta.” Assim, o Soul Grand Prix passou o bastão para a era disco, que mais tarde daria origem ao funk carioca, e Filó saiu de cena lançando o LP Soul Grand Prix 78. Nas palavras de Aenor Neto, dançarino e coreógrafo: “Filó é o nosso Zumbi.”

Você pode assistir ao filme em: Joanesburgo Afrikan Freedom Station,  29 Edward Rd, Sophiatown. Data: 10.07.2025. Hora: 19:00 para começar às 20:00.

About the Author

Laura Burocco is a researcher at Centro em Rede de Investigação em Antropologia CRIA at the University of Lisbon.

About the Translator

Priscilla Marques Campos is a Brazilian master of African social history. She is chief editor of Hydra Journal and enconto orí Review.

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